quinta-feira, 2 de agosto de 2018

Não é nada

   Não importa quanto o tempo passe, eu nunca vou entender como você consegue me deixar ir embora. Toda vez que eu subo as escadas do seu prédio meu coração é ferido à faca. Parece que eu vejo nós dois lá do alto, no seu quarto, na sua cama... Como se não existisse telhado, como se fosse possível eu ver nós dois errando no instante do erro. Você falando vulgaridades no meu ouvido, e eu rindo como se o choro estivesse distante. Eu amo o seu cobertor, amo a sua tv, amo sua mão percorrendo o meu corpo enquanto pouso minha cabeça no seu peito. Amo quando você beija o topo da minha cabeça, como se eu fosse fácil de ser amada. Eu te escuto e não te aprendo. E olho pra você sabendo que o amanhã não existe pra quem vislumbra o outro assim desse jeito. Te falo dos meus planos de mudar de cidade, de escrever um livro e tentar não sentir saudade. Você me fala sobre morarmos juntos só para tripudiar em cima do meu querer. No minuto anterior falou que não pode me ver mais vezes para não se apegar. Só que eu fiquei sabendo que você chegou de mãos dadas no velório do seu avô ano passado. Eu poderia tê-lo conhecido se você não me escondesse do mundo dentro do seu quarto durante esses dois anos, enquanto mente ser uma alma livre. 
   Tenho mesmo que me livrar de você, você me faz sentir uma pessoa medíocre. Larguei os meus amigos no bar para ir vê-lo no meio da noite, você só queria ver o celular, porque flertar com outras mulheres enquanto há uma mulher nua na sua cama lhe faz gozar melhor. Já falei demais, já me expus demais. Coloquei meu coração num prato para você degustar melhor. Por que você me faz perder tempo? Apagar o meu número do seu celular foi meu desespero e alívio maior. Mas eu já decorei o seu. Me vesti em silêncio, a sua inquietação era gritante, perguntou três vezes se eu estava bem, ser monossilábica pelo jeito lhe fere. Sentei na cama, retoquei o batom com a mísera luz da televisão, você observando cada gesto meu. Fui me olhar de corpo inteiro no espelho do seu guarda-roupa e você perguntou como rasguei minha meia-calça... Foi você. Você também rasgou o meu coração, meu bem. Voltei a sentar na cama, apertei as tiras dos meus sapatos, você atravessou o seu lado preferido da cama e veio para perto de mim, olhou nos meus olhos e disse que lhe deixo sem saber o que pensar, sem saber o que fazer. Falei para continuar fazendo o que sempre fez. Nada. 
   Será que é tempo que lhe falta para perceber? Eu falei nos seus ouvidos que você vai se arrepender de me perder. A vida também sabe ser cruel. Eu vou esquecer das sensações primitivas, do desejo, dos arrepios, do fogo mútuo, do quão infinito pareciam os degraus da sua escada enquanto eu descia correndo para tentar fugir disso, e você atrás de mim querendo quebrar o meu silêncio. Eu fui embora da sua casa, de você, de mim, mais uma vez. O taxista se tivesse um lenço me emprestaria, me induziria a chorar naquela hora. Mas até agora o choro está entalado na garganta, a lágrima presa nos olhos. Mais uma vez isso acabou comigo. 


Arte: Tina Maria Elena



5 comentários:

  1. Eu li cada oaragrapa sabendo exatamente sobre o que você escreveu. Eu vivi isso tantos anos, compartilhei dessa dor...
    Amar sozinho machuca, fere mais que socos ou balas perdidas.
    Te desejo reconstrução, paz e equilíbrio. Tua dor me completa. 💚

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  2. Helen, hoje eu retornei aqui só porque senti saudade de ter tempo para partilhar meus textos e ler as coisas de outras pessoas. Que grata surpresa ver uma notificação recente de publicação no teu blog. A gente tende a pensar que tudo ao redor meio que pára quando abandonamos algo. E é desolador e cruelmente metafórico saber que não. Mas que incrível te revisitar e constatar o quanto tua escrita continua crua e impecável. Sorte dos que te acompanham (agora com mais frequência que eu, infelizmente) e podem se encontrar com essas narrativas viscerais, expostas, que doem, de tão humanas, mas que nos resgatam só pela chance de nos sabermos nelas. Não lembro quantas vezes disse e assumo sem constrangimentos o quão repetitiva posso ter me tornado, mas MUITO OBRIGADA pelos seus textos. Um abraço!

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  3. Helen, hoje eu retornei aqui só porque senti saudade de ter tempo para partilhar meus textos e ler as coisas de outras pessoas. Que grata surpresa ver uma notificação recente de publicação no teu blog. A gente tende a pensar que tudo ao redor meio que pára quando abandonamos algo. E é desolador e cruelmente metafórico saber que não. Mas que incrível te revisitar e constatar o quanto tua escrita continua crua e impecável. Sorte dos que te acompanham (agora com mais frequência que eu, infelizmente) e podem se encontrar com essas narrativas viscerais, expostas, que doem, de tão humanas, mas que nos resgatam só pela chance de nos sabermos nelas. Não lembro quantas vezes disse e assumo sem constrangimentos o quão repetitiva posso ter me tornado, mas MUITO OBRIGADA pelos seus textos. Um abraço!

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  4. "e eu rindo como se o choro estivesse distante" sua linda. poética.

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