sexta-feira, 29 de setembro de 2017

Numa barbárie eles se esbarraram no bar

                                                                                       Conto baseado em um antigo poema autoral


  Verdes, os olhos de pupilas dilatadas a encarando do balcão no canto do bar. E os olhos dela, tristes. Mas ele naquela mísera luz não teve olhos para ver. O deslumbramento e o álcool anuviam tudo, não é mesmo? Torcia ela para que ele fosse mais do que um adorno do ambiente. Almejava ele que ela fosse o troféu da noite. Entre olhares minuciosos e gestos impalpáveis, saíram os dois pisando em cacos de vidros na calçada, como quem pisa em estrelas. No caminho até o ponto de táxi, ela sentia os olhares dos bêbados e das putas da cidade sobre os dois juntos, inacreditando na exatidão daquela imagem. Ela possuinte de cabelos negros, tão pálida e desarticulada, com um dos homens mais bonitos da cidade. O mais bonito para ela. E considerava isso há anos.
   Quebrando o silêncio após escutar a torneira jorrando água, ele disse que gosta tanto de ver a chaleira chiar. Como se com ele conversasse, contando-lhe urgências... Ele desencaminha o assunto para objetos externos, ganhando o tempo dela, que prepara o seu café, tentando lhe devolver o foco. Precisava destilar o álcool que bebera em algo forte, porém sereno. Ele a olha como quem quer tudo, mas ela só quer umas poucas palavras. Já passa das três da madrugada e ele agora troca o hálito do ar com o seu cigarro caro. Pergunta se ela tem por hábito recolher estranhos em bares lotados e preparar-lhes um café no cinza das horas. Ela disse que já o conhecia, de alguma avenida, daquela loja de tintas, quem sabe, talvez de outra louca vida. 
   Ele proferiu que louca é ela, e riram. Riram como quem pisa mesmo em cacos de vidros. Falou que o café estava amargo e pediu papel e caneta, colocou um bilhete em suas mãos e saiu sem dizer nada. Ela num espasmo leu "o demônio que habita em ti, já morou em mim'', uma cena quase que baudelairiana. A partir daquele momento, ela poderia persegui-lo em todos os bares mais ínfimos, para vê-lo, corrompendo outras moças estonteadas, mas apreciadora de um bom drama. Escreveu o nome dele na sola do seu sapato favorito e voltou para o bar. Essa noite ela vai dançar até ele se apagar dela.

2 comentários:

  1. Efemérides noturnas duram mais do que uma madrugada; umas até se entrelaçam à alma na esperança vã de completude. Bobagem! É só mais um adendo ao histórico boêmio. ;)

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  2. O mundo sempre foi bárbaro, a tua poesia é ...
    abraço e confesso meu eterno encantamento.
    Saudações!

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