sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

Amor que não foi vivido totalmente volta

eu amei as suas mãos
os dedos compridos
as unhas bem feitas
amei o dorso alvo
a quentura da pele
amei o cheiro extasiante 
amava te ver pronto pra mim
duro
lascivo
mas sempre numa delicadeza imutável
talvez eu tenha amado
outros fragmentos da sua existência
mas nunca falarei disso
para não pisotear mais esse querer
de todos que um dia me olharam
o seu olhar eu nunca ousei entender
pode ser que ninguém nunca mais
me olhe desse jeito
mas poesias foram escritas 
no suor da nossa entrega
como se o pertencimento pudesse existir
através do tempo
se eu te amei
amei sem saber
mas você sabia.

Título: Carpinejar
Arte: Tina Maria Helena


domingo, 1 de dezembro de 2019

Não tenho mais espaço para ti. Nem no meu coração. Nem no meu cérebro.

você me quebrou pela última vez
e eu nunca esquecerei
como não esqueci da música que tocava 
quando você me beijou pela primeira vez
acontece que eu permiti você me magoar 
vezes demais
isso nunca mais acontecerá
eu chorei até sufocar
eu chorei até ''crer afoitamente que o que é, é''
e agradeço a van gogh pelo entendimento
você nunca gostou de mim
mentia olhando nos meus olhos
mentia com a minha cabeça repousando no seu peito
mentia entre as minhas pernas
e mentiu no outro lado da tela 
estando mais de mil quilômetros de distância
quando tudo o que você me fez voltar para te encontrar
espero que aceite
e compreenda 
que nada supre
a sensação de ser límpido 
mesmo na fugacidade do gozo
você me quebrou 
mas homens como você 
criam sem querer
mulheres fortes
nas horas cinzas
você lembrará tudo de nós
e o porquê de nada acontecer na sua vida
mesmo pegando em várias mãos no meio da praça
e exibindo mulheres bonitas para esconder sua feiura
indo do êxtase à náusea
e recorrendo a livros de autoajuda 
sem saber que nem mil livros lhe salvarão da sua covardia
porque você sempre será
um esboço de qualquer coisa
qualquer coisa que não evoluiu no meio do caminho
qualquer coisa como uma pedra no caminho do outro
qualquer coisa como a ruína de quem é de verdade
você nunca mais vai acontecer nos meus dias.

Título: Do livro "Antologia da Novíssima Poesia Portuguesa, 1959."



sexta-feira, 1 de novembro de 2019

Não pode haver em mim a parte que te falta

com todo o drama que sou capaz de criar
e sou capaz de muito
poderia tocar it must have been love agora
enquanto eu me desvaneço na minha última obsessão
pois gosto de sofrer com a classe oitentista 
acho que também estou boiando igual uma tola
nessa vida
nessa história
nesse casinho que perdura três primaveras 
você acha que nos achamos 
e que isso não acontece duas vezes
eu acho que isso não é o suficiente
já que você nunca banca o que sente
são tantos medos 
constituindo esse homem pequeno que você é
eu sinto pena
meu coração - que você diz ser lindo - se apodrenta assim
te escrevi tudo que dói 
desde a noite que percebi que não seria fácil sair disso
ainda não saí
não saímos 
não são apenas os mendigos que não me deixam dormir
enquanto passeiam em frente ao meu prédio pelas madrugadas
a verdade é que a rua é deles
o medo é seu
e o desgosto é meu
eu concordo, você é mesmo pouco pra mim
e você ter gostado muito de mim 
[mas do seu jeito]
me fere de modos impronunciáveis
porque tudo que vem de você é homeopático
dos gestos até as palavras.

Outubro/2019 

Título: @atrumana.setra

terça-feira, 29 de outubro de 2019

Um corpo onde a solidão fosse impossível

remexendo em casa de marimbondo 
é o que eu faço
quando lhe chamo em pensamento
e você vem
esse caso extrapolou a normalidade
beirando os trezentos e sessenta e cinco dias 
que não uso o seu corpo
e mesmo assim não nos deixamos em paz
como se as tréguas dessa batalha apenas servisse
para nos lembrar de como ardíamos juntos com esplendor
eu sou louca por você
e sinto que você é louco por mim
mas você nunca dirá nada
nada que não seja para me magoar.

Título: Eugénio de Andrade, no livro "Antologia Breve".

22/07/2019

quinta-feira, 24 de outubro de 2019

Eu quero o conto de fadas

Sento na cama
no escuro do quarto
não consigo respirar direito
eu apertei meu corpo contra o seu
sob esse lençol com flores azuis
e você acordou comigo
rebatizando o domingo 
você não vem
eu não vou
você nunca esteve lá para mim
nem aqui 
ninguém jamais viu
você segurar a minha mão
eu não posso voltar
pois os cacos de mim
não conhecem a direção.

segunda-feira, 1 de abril de 2019

atração herética

outra vez
no nosso bar em comum
você ressurge no ápice da noite
com você, eu sempre vou embora
os olhos mais lindos da cidade
meu dionísio 
meu anjo renegado
você segurou na minha mão
e me beijou por todo o caminho
sentamos naqueles balanços
na pracinha da esquina da sua casa
como se tivéssemos 10 anos outra vez
você é o meu menino 
preso num corpo de 30 anos
minha distração preferida
já me destruiu 
me fez virar pó
mas você eternamente constitui minha vividez
me colorindo com suas tintas
me tocando como quem sabe o valor da poesia
você, meu personagem decadente 
que num fugaz vislumbre
me lembra como é gostar 
de quem a gente tanto odeia.

fev/2019

quarta-feira, 13 de março de 2019

solar

são dias amenos
e tediosos
da janela da sala 
avisto o jardim da senhorinha 
minha vizinha
me permito rimar
pois o encanto é abrangente 
aqui chove demais
mas tá tudo bem sentir saudade
saudade dos bares
da minha casa
do meu pai e irmão
do cachorro fuzarqueiro
dos poucos amigos
saudade daquele beijo na boca
e das praças
e do bom chimarrão
aqui a poesia me rejeita
habitei as mesmas ruas
por tanto tempo
chega a ser banal me sentir transposta
quando me perco em Saturno 
ou em Urano
novas ruas
com nomes de planetas
estou aprendendo ser meu próprio lar.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

Para ler escutando The Cranberries - Linger

todas as coisas que vivemos 
eu já escrevi
não faltou tempo
faltou vontade
agora eu tenho que revirar minha mente
em busca de detalhes seus
que não morrem em dias quentes
o clichê de gostar tanto pra tão pouco
a noite que você foi me buscar na faculdade
eu quis tanto que se repetisse
como se fosse natural
como se as minhas pernas fossem
o lugar favorito das suas mãos enquanto você dirige
mas sempre existiu outras pernas
as pessoas me alertaram
sua baixeza era evidente
poesia alguma o salvaria
mas essa aura me arrastava até a sua porta
toda vez que eu precisei de paixão
hoje você é um prurido na minha pele
me faz tão mal
sempre volta a me perturbar.


Arte: Tina Maria Elena





quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

A esperança é uma droga alucinógena.

por tanto tempo 
esperei um gesto
algo que adiasse 
a degradação
se a minha existência
lhe tocasse
se a minha presença
no outro lado da rua
lhe tirasse o sono à noite
se tudo fosse diferente
essa história não seria minha
acho que já escrevi 
um poema assim
mas nunca doeu assim
a dor se aperfeiçoa
não é mesmo?
e eu estou sempre
me repetindo
mas bastaria um gesto seu
para cessar a corrosão.

Título: Rubem Alves

quarta-feira, 9 de janeiro de 2019

O amor que não dá certo sempre está por perto.

   Aquele ar saudosista está pairando por aqui, agora consigo notar as rachaduras dos velhos sobrados da avenida mais movimentada, a sensação é confusa. Mesmo assim, não pertenço a esse lugar. Mesmo se você tivesse me abraçado dentro do meu bar preferido, mesmo se você gostasse de mim... Eu teria que ir embora. Mas ao menos iria sabendo que morei no seu peito. Hoje lembrei da noite que limpei as lentes dos seus óculos com o lenço dos meus, e você me olhou com afeto. Sem imaginar que eu poderia fazer muito mais se você deixasse. Na verdade nunca irei esquecer de todas as pequenezas que constituíram os nossos momentos, mesmo que logo ali na frente você esqueça o meu nome. Até esse minuto presente posso dizer que ninguém me dilacerou dessa maneira, mas o meu coração partido eu sempre colei com poesia. E será sempre desse jeito. Mesmo que o seu jeito me assombre e me rompa em  diminutas partículas de açúcar. Você se desfez tanto de mim, não consegui escrever durante esses três meses, eu precisei desse tempo para sentir isso, sentir meu corpo se desfragmentando naquele evento abarrotado de gente onde outras mãos seguravam as suas mãos no centro da cidade, para todos verem. É compreensível a dor. Meus pés na água fria de Copacabana não esfriou a sua imagem na minha cabeça. Seu nome no meu celular após tudo isso, sua precisão epidérmica de mim espezinha minha crença em grandes pertencimentos. Você me procurou só para comprovar que essa minha paixão é mais elevada que o morro do Corcovado. Eu vou ir embora e você nem sabe, se soubesse não se afligiria pois seria desimportante não me ver nunca mais. Preciso ir, sobretudo para me conhecer e me amar. Para nunca mais gostar de quem me esconde, de quem diz que não pode me ver mais vezes, de quem numa noite me queima no colchão e me esquece no outro dia. Vou ir embora porque nunca mais quero sentir isso.


Título: Cacaso, no livro "Lero-lero".